Relatório Preliminar do CIP Sobre a Descentralização em Moçambique (2020–2024): Balanço Crítico e Perspetivas Futuras
A descentralização em Moçambique, implementada no ciclo de governação provincial entre 2020 e 2024, foi o foco de um recente relatório preliminar apresentado pelo Centro de Integridade Pública (CIP), organização da sociedade civil moçambicana vocacionada à promoção da integridade na esfera pública. A apresentação teve lugar em Maputo, no dia quarta-feira, 23 de julho de 2025, a cargo do pesquisador Ivan Maússe. O documento dedica particular atenção às províncias de Nampula, Sofala e Zambézia, servindo como um primeiro olhar estruturado sobre as experiências vividas nesta fase inicial de implementação do modelo descentralizado.
1. Contexto Político: Redução das Tensões Pós-Eleitorais
Segundo Ivan Maússe, a descentralização trouxe ganhos políticos importantes. Desde 2012, Moçambique vinha atravessando um ciclo de tensões pós-eleitorais marcadas por protestos com níveis de conflito e polarização bastante elevados. O modelo descentralizado foi concebido, em grande parte, como uma resposta a estas tensões, tendo como objetivo a repartição e partilha de poder entre a FRELIMO, a RENAMO e outras forças políticas. Na sua análise, Maússe sustenta que “do ponto de vista político, sim… pelo menos conseguimos amainar as tensões em termos de partilha do poder que, durante muito tempo, aconteceram em Moçambique… este modelo foi concebido… para evitar que Moçambique continuasse a ter aquela tensão política que vínhamos tendo desde 2012… Pelo menos, nisso nós conseguimos.”
Esse declínio das tensões pós-eleitorais representa um passo crucial para a estabilidade democrática, permitindo que a governação local se desenvolva dentro de um ambiente político mais sustentável e menos conflituoso.
2. Qualidade de Vida e Impacto Social: Resultados ainda Modestos
Embora o modelo tenha tido êxito no plano político, o pesquisador alerta para os resultados insuficientes na melhoria da qualidade de vida da população. De forma sucinta:
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Os ganhos sociais e económicos ainda não são visíveis de forma clara e consistente;
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O impacto na oferta e acesso a serviços públicos — como saúde, educação, saneamento e infraestrutura — permanece modesto;
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Apesar da implementação do novo modelo, os efeitos concretos nas comunidades ainda não se refletem em indicadores estruturais de desenvolvimento.
Maússe enfatiza que os efeitos mais robustos desse modelo só poderão ser comprovados no médio e longo prazo. “Nós acreditamos que, a médio e longo prazo, poderemos ter um modelo consistente que possa responder aos anseios da população”, conclui. A sua leitura revela optimismo cuidadoso: os mecanismos institucionais existem, mas os resultados são ainda preliminares.
3. A Sustentabilidade do Modelo: Autonomia e Recursos
Segundo o relatório citado, a eficácia da governação descentralizada depende fortemente de três pilares fundamentais:
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Fontes tributárias próprias: impostos e taxas que possam ser geridos localmente;
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Transferências fiscais justas: alocação equitativa de recursos do Orçamento do Estado;
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Acesso ao endividamento regulado e autonomia na gestão dos recursos.
Dados revelam que, entre 2021 e 2024, apenas 37 % do orçamento nacional foi efetivamente descentralizado, com 63 % dos recursos ainda sob controlo central. Desses recursos descentralizados, 38 % foram destinados às províncias, 57 % aos distritos, e apenas 5 % aos municípios. Esse desequilíbrio evidencia limitações estruturais: a parcela maior dos recursos concentra-se em níveis territoriais abaixo dos municípios, refletindo uma lacuna na atribuição de poder decisório e de investimento às autarquias urbanas.
Este esquema de distribuição sugere um modelo que ainda não confere uma autonomia real plena às entidades subnacionais, prejudicando a capacidade local de responder com eficácia aos problemas e desafios específicos das populações.
4. Recomendações Estratégicas: Transferências Condicionadas e Metas Setoriais
Para inverter o ritmo lento dos resultados, o CIP propõe a adoção de transferências específicas ou condicionadas, vinculadas a resultados setoriais concretos. Por exemplo:
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Na saúde: metas como redução da mortalidade infantil, cobertura vacinal, número de consultas ou centros funcionalmente equipados;
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Na educação: indicadores como taxa de frequência escolar, percentual de alunos matriculados concluindo o ano letivo, ou melhoria nas infraestruturas escolares;
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No saneamento: aumento do acesso à água potável e sistemas de esgoto em áreas urbanas e rurais.
Ao estabelecer metas claras e vinculantes, as transferências financeiras deixariam de ser genéricas e ganhariam caráter de incentivo ao desempenho. Esse modelo contrasta com o atual, onde os fundos chegam às províncias e autarquias sem condicionamentos explícitos ao cumprimento de objetivos definidos, reduzindo a responsabilização e os efeitos medidos.
5. Participação Cidadã e Aproximação dos Serviços
O relatório também destaca a importância da participação efetiva dos cidadãos nos processos decisórios. José Manhiça, académico da Universidade Joaquim Chissano, questiona:
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Os cidadãos das províncias envolvidas participaram de facto nas decisões que impactam as políticas locais?
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Há uma real aproximação dos serviços públicos à comunidade, tanto no acesso como na capilaridade?
Estas questões sugerem que, além da autonomia e dos recursos, a descentralização deve assegurar canais verdadeiros de consulta e envolvimento da população. Sem isso, a transferência de competências pode continuar a ser formal, mas sem legitimidade ou adesão popular.
6. Riscos de Desvio e Propósito Político
Sónia Chone, especialista em descentralização, alerta para um risco sistémico: o uso da descentralização como ferramenta política emergencial em vez de um processo estruturado. Ela defende que:
“A descentralização foi usada como uma receita para resolver um problema político… e sempre que se usa a descentralização para resolver um problema político… há um desvio daquilo que são os objetivos da descentralização.”
Ou seja, há o perigo de que o objetivo principal—o desenvolvimento local sustentável, a democratização da governação, a melhoria institucional—se dilua se o processo for capturado por interesses políticos imediatistas.
7. Síntese e Perspetivas Futuras
Resumo das principais conclusões:
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Redução de tensões políticas: o novo modelo descentralizado contribuiu para suavizar conflitos entre partidos e estabilizar o cenário político pós-eleitoral;
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Impacto social limitado: os benefícios à população são ainda restritos, pouco visíveis, sobretudo no que toca a serviços públicos e qualidade de vida;
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Recursos insuficientes: apenas uma fração do orçamento é descentralizada, e há desequilíbrios na distribuição territorial;
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Falta de incentivos: as transferências são genéricas e não atreladas ao desempenho local, reduzindo potencial de eficácia;
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Frágil participação da sociedade: os cidadãos ainda não estão plenamente envolvidos nos processos decisórios que os afetam;
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Risco de instrumentalização política: a descentralização foi originariamente motivada por uma urgência política e pode desviar-se do seu propósito estrutural.
Perspetivas futuras:
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Com o amadurecimento do modelo, resultado da acumulação de experiência institucional e práticas de governação local, haverá espaço para que a descentralização se torne mais eficaz social e economicamente;
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O foco em metas sectoriais, inclusão de mecanismos de responsabilização e maior autonomia financeira das províncias e autarquias são fundamentais;
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O envolvimento organizado da sociedade civil, meios de comunicação locais e movimentos comunitários tem de ser fortalecido para garantir mais participação e fiscalização da governação local;
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Uma legislação clara que consagre autonomias, fontes próprias de receita e marco de accountability institucional pode consolidar o modelo descentralizado como um instrumento de desenvolvimento nacional sustentável.
8. Conclusão
O relatório preliminar do CIP sobre o ciclo de governação descentralizada entre 2020 e 2024 coloca em evidência um paradoxo promissor: a descentralização mostrou-se eficaz no terreno político, contribuindo para reduzir tensões históricas e estabilizar a repartição de poder. Contudo, no plano social, os resultados ainda não se consolidaram de forma estrutural. Para que a descentralização cumpra o seu propósito constitucional e transforme as condições de vida das pessoas, é essencial que se acompanhe o modelo com financiamento adequado, metas condicionadas, real autonomia local e participação cidadã constante.
Os próximos anos serão decisivos para aferir se Moçambique conseguirá transformar esta estabilidade política em progresso social real e duradouro. A chave estará na capacidade coletiva de manter o processo em linha com os princípios de integridade, responsabilização e desenvolvimento comunitário que estiveram na base da promoção da descentralização.
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